longe vai
longe vai

O que está acontecendo?

17/02/2020

O exército de um editor só

É engraçado como a gente às vezes faz algo por acaso e quando vê está indo fundo. Pelo menos eu sou assim, fico obcecado com alguma coisa e num instante tenho dez abas do navegador abertas em páginas falando sobre plantas comestíveis que podem ser encontradas crescendo em calçadas.

Foto de uma planta chamada Beldroega, Portulaca oleracea
A beldroega, uma planta comestível que nasce até em rachaduras de calçada, não é o assunto desse texto.

Esse post é longo, então, como diz uma música que eu gosto: "Feche a porta, esqueça o barulho. Feche os olhos, tome ar. É hora do mergulho."

Muitos anos atrás eu traduzi um artigo sobre mixagem usando fones de ouvido que encontrei no site da revista Sound on Sound. O assunto me interessava justamente porque eu precisava mixar uma faixa e não tinha monitores. Estava difícil ler com meu inglês sofrível, então simplesmente comecei a traduzir o artigo frase por frase. Depois publiquei a tradução no meu blog porque pensei que realmente era uma leitura útil.

Não sou tradutor e nem tenho formação para ser, mas acho que o texto ficou bom. Não foi tão fácil e demorei, pois o texto era um tanto quanto técnico e exigia as palavras certas. Foi divertido ver os significados se descortinando a medida que eu vencia os parágrafos. E de repente traduzir não pareceu mais um bicho de sete cabeças, só uma coisa trabalhosa mesmo.

Isso foi em 2015. Agora corta para 2016, acho, e a bola da vez é meu renovado interesse por fotografia, abandonado na infância, especificamente fotografia de rua. Então lá estava eu lendo livros e um monte de textos. Numa dessas conheci o trabalho do Eric Kim e encontrei seu guia para perder o medo de fotografar na rua. Vendo que ele oferecia seus textos como open content, comecei a ter ideias.

O fato é que tudo está conectado. Veja, em 2011 eu iniciei a construção de uma máquina de fliperama e fui contando o processo no meu blog. No meio do projeto, que levou anos, decidi que publicaria um livro com o material e as informações que juntei. Eu queria fazer um livro mesmo, com editora, ISBN e tal. Depois de pesquisar muito ficou evidente que seria melhor publicar por conta própria, então aproveitei o benefício de ter CNPJ e criei meu selo editorial. Finalmente em 2016 lancei o livro Projeto Arcade. Mal diagramado e com um texto chato que só (para quem não se interessa pelo assunto) mas, sim, meu primeiro livro está aí disponível (na verdade cheguei a publicar um outro muitos anos atrás, mas é um lixo, não aconteceu).

Então, voltando. Novamente lá estou olhando um texto em inglês que meu cérebro lento percorre como um caracol. Como era relativamente curto, comecei a traduzir para absorver melhor. No meio do caminho decidi que publicaria aquilo como e-book pelo meu selo, daria um bom livreto e seria muito interessante já que, pelo que eu pesquisara, não havia nada parecido em português. Entrei em contato com o agente do autor e recebi o ok. Obviamente não seria para venda, mas distribuição gratuita. A tradução foi fácil e difícil. O texto estava num inglês bem direto, um pouco redundante, e fiz o melhor que um não tradutor poderia fazer. Mais uma vez o grosso do trabalho foi na parte técnica.

Me ocupei com as notas de rodapé, detalhando os conceitos que o autor mencionava apenas de relance, para que o livro pudesse ser entendido não só por fotógrafos amadores ou formados, mas também por quem não soubesse muito de fotografia. Fui cuidadoso na editoração e na criação da capa, tendo que relembrar e aprimorar o que eu havia aprendido sobre criação de e-books. Fiz tudo de modo muito simples, mas de coração. Lancei em 2017 numa noite de autógrafos em que nem o autor, nem o tradutor e também nenhum leitor compareceu, e agora o livro está disponível numa pá de lugares. Pelas boas notas em diversas livrarias, acho que tem sido útil. Fico muito contente. Hoje sei que não ficou uma ótima tradução, mas aparentemente o livro cumpre bem sua função.

Então tive essa ideia. De repente posso ser uma editora de um homem só, vamos fazer uns livros, yeah! Eu venho acalentando o sonho de um dia quem sabe escrever algo que valha ser impresso desde que eu era adolescente. Por enquanto não tenho nada realmente bom, mas quem sabe num futuro próximo? Enquanto isso posso traduzir algumas das coisas que gosto e talvez ganhar um troco. Assim ao menos me torno um coautor. Tradutor é coautor, sabia?

Antes de continuar, uma pausa: se você for um tradutor profissional e estiver lendo isso, quero que você saiba que você tem toda a razão e está certíssimo em seja lá o que estiver pensando.

Fato é que depois dessa primeira tradução mais a sério fiquei confiante e considerei uma boa ideia traduzir coisas em domínio público que eu pudesse lançar pelo meu selo. Já que não consigo ser autor de algo que preste, quem sabe eu possa ser o cara que traz para a última flor do Lácio boas obras esquecidas no passado?

Como comentei aí num texto anterior, meu interesse por fotografia também chegava na parte de revelar fotos como se fazia antigamente, usando negativos de verdade e algumas soluções químicas. Quando descobri que os negativos de celulóide continham gelatina comecei a procurar alternativas. Fui para o fundo, voltando no tempo. Descobri que de fato existiam negativos acidentalmente veganos, olha só! Descobri o papel salgado e novamente estou lá lendo um monte de coisas em inglês. E foi aí que me vi face a face com o maior desafio que um não tradutor poderia ter a audácia de por os olhos:

Sim, eu meio que cresci o olho, sou um tolo ingênuo. Achei que era uma grande oportunidade. E de fato foi. Uma grande oportunidade que me arrastou para três anos de trabalho duro e muito aprendizado. Se eu soubesse o tanto que esse livro iria exigir de mim, provavelmente nem teria começado, mas fico feliz de não ter sabido. Às vezes não saber é bom, né?

Traduzir essa obra foi um grande desafio e o Chico que me perdoe, mas acho que foi maior do que gravar um disco. Quem me conhece sabe que tenho sérios problemas de dedicação. Esse livro exigiu dedicação. Demorei muito para terminar, além do tempo necessário, não só porque sou esse tradutor meia boca com problemas de procrastinação, mas porque era um projeto grande demais para uma pessoa só, principalmente um aventureiro e iniciante. Do estudo do texto original até o acordo com a gráfica. Sozinho? Meu pai do céu! Mas tive ajuda na revisão, João me ajudou muito no texto final e aceitou como pagamento o exemplar número 1. É bom ter amigos, né?

Foi um projeto complicado porque comecei pelo ângulo errado e estava cheio de pretensões. Em dado momento me vi não honrando o autor e precisei repensar o meu objetivo. Também precisei aceitar que não venderia como água porque é uma obra de nicho. É um livro de arte, exigiu cuidados de um livro de arte. Ele tem fotos que precisavam ser grandes, fotos cujos originais não estariam disponíveis nem se eu fosse buscar na França. Então tive que ser criativo e cavar muito. Não poderia faltar nada, ele teria que ser completo e definitivo. Necessitou de muita pesquisa e estudo, muita leitura. A tradução em si foi a parte que menos deu trabalho, meu esforço se concentrou em obter as ferramentas que eu não possuía. Foi como construir uma casa sozinho começando por aprender a fazer a massa. Ora bolas, precisei ler um livro de 600 páginas só para entender como se faz um livro!

Enfim, tive que estudar e aprender muita coisa para estar a altura do trabalho. Nada foi fácil porque eu não poderia pegar atalhos se pretendesse realmente fazer algo de valor. Tudo foi feito pensado e repensado uma, duas, três vezes. Passar o projeto para um profissional estava fora de cogitação, eu não tinha esse dinheiro. Como já estava no meio do caminho, era uma questão de honra ir até o fim.

No final de 2019 fiquei um pouco frustrado ao saber que alguém, provavelmente ao mesmo tempo em que eu, trabalhava na tradução desse mesmo livro. Poxa, 150 anos depois, dois ao mesmo tempo agora? Fiquei bem decepcionado e pensei em jogar tudo no lixo. Não tive coragem. Não poderia, era muito tempo investido. Era uma obrigação terminar o que comecei. Pensei então em distribuir apenas entre amigos. Fiquei com medo de colocar a venda e me apontarem como plagiador, uma fraude, um impostor, e fiquei inseguro com imaginárias comparações. Depois de meditar um bocado, vi que era uma bobagem. Não há nada para se lamentar, afinal quanto mais versões de qualquer coisa, melhor. Mais pontos de vista sempre agregam mais conhecimento e nos ajudam a evoluir. E a vida não precisa ser uma competição, a gente já vive sofrendo em provar tanta coisa para nós mesmos, se agirmos assim por aí ficaremos todos loucos. Afinal, preciso ter medo se meu único carrasco sou eu?

Bom, é isso. Fique aí com esse desabafo e um suspiro que estava preso há muito tempo. Se você leu tudo até aqui (parabéns e obrigado!) e está se perguntando "mas que livro é, afinal?!", é esse aqui.

Está no prelo e são poucos exemplares nessa primeira tiragem. Ainda não defini um preço de venda e recuperar o investimento financeiro é o de menos. Quero apenas mostrar com muito orgulho o meu trabalho e honrar o autor, o que mais posso querer? O importante é que estou satisfeito e, sem falsa modéstia, penso que o resultado está bastante bom. Estará a venda em breve na loja virtual do meu sebo. Se alguém quiser adquirir um exemplar assinado, é só me pedir. Fazemos de conta que é uma noite de autógrafos, que tal?