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O que está acontecendo?

09/02/2023

Escrever como se não houvesse amanhã II

Cinco alternativas para enfrentar um mundo que cutuca nosso ombro a todo momento

Este texto é um complemento ou continuação do post Escrever como se não houvesse amanhã.

Mais ou menos ali pelo meio da década de 1980 o uso das máquinas de escrever entrou em declínio enquanto os computadores pessoais fluíam das prateleiras das lojas para a mesa de trabalho das pessoas. O digital oferecia vantagens tentadoras: editar antes de imprimir, correção ortográfica, fontes de vários tipos e de tamanho variável etc. Nessa transição surgiram máquinas de escrever com tecnologias diferentes dos tradicionais sistemas de martelos de tipos. Vieram as máquinas elétricas, eletrônicas e híbridas, já com teclados muito parecidos com os dos computadores.

Os primeiros computadores pessoais eram basicamente máquinas de escrever turbinadas e com alguns extras. Internet e celulares espertos estavam ainda virando a esquina. Então temos que, de uma máquina mono tarefa, direta e simples, chegamos a uma máquina de possibilidades sem tamanho.

Com recursos modernos vem problemas modernos. Para o simples escritor de antes, o bloqueio criativo, a indisciplina e a divagação tinham causas que nasciam fora da sua mesa de trabalho. Para o escritor de hoje essas causas vêm do seu próprio instrumento de trabalho. Que terrível!

Fotografia de um computador antigo numa mesa cheia de disquetes
Playing with the Amiga 1000 (Blake Patterson) https://www.flickr.com/photos/blakespot/3981904024

As vezes tendemos a colocar a culpa de todas as nossas incapacidades em fatores externos, quando na verdade é tudo coisa da nossa cabeça. Sim, realmente eles nos querem distraídos e babando enquanto assistimos um TikTok atrás do outro, mas não podemos nos deixar levar pelo conforto de boiar na correnteza. Os melhores frutos não caem na nossa mão, é preciso colhê-los, ou seja, dependem de nossa ação ativa e efetiva. É nossa responsabilidade e ninguém vai nos salvar, então levante-se e pegue as rédeas. Ok, chega de autoajuda por hora.

O ponto é que nessa tendência de buscar meios de trabalhar sem distrações alguns métodos novos e antigos surgem, ressurgem e se reinventam. Obviamente, e infelizmente, escrever é uma atividade de nicho, então não é correto afirmar que estamos numa onda de retomada das máquinas datilográficas e coisas do tipo, pois a maioria das gentes foi conduzida a abandonar o uso corriqueiro desses objetos assim como o fizeram com discos de vinil, CDs, câmaras fotográficas etc. Porém é fato que a época de jogar essas máquinas no lixo passou, atravessamos a fugaz atenção devoradora dos hipsters e estamos agora na época de repensar esse modo arcaico de escrita. Não que tenha sido abandonado de todo, você encontra sem dificuldades essas coisas barulhentas em repartições públicas.

Longe de mim parecer um conservador e correndo o perigo de ser, admito que de fato algumas coisas alcançaram seu apogeu de eficiência num momento que não é o agora e que escrever usando um equipamento que tem esse como único propósito talvez seja uma dessas coisas.

Caneta

Fotografia de Ernest Hemingway escrevendo à caneta
Ernesto e sua caneta Montegrappa.

Claro que estou falando de caneta e papel, do que mais poderia ser? A caneta é um conceito muito antigo que vem da pena de aves, chega à caneta-tinteiro e finalmente consolida-se na esferográfica como ferramenta de uso de massa. É e sempre será a melhor forma de escrever.

Caneta e papel superam a máquina datilográfica em alguns aspectos e perdem em outros. Podem ser usados em quase qualquer lugar, sem fazer barulho e por um custo muito baixo. Por outro lado, é um método um tanto quanto braçal e que demanda até esforço físico, além de que exige bastante trabalho posterior de digitação e revisão se o texto for para ser lido por alguém além do autor. É o melhor meio de escrever fugindo de todo tipo de distração porque é um método portátil de verdade e com máxima independência.

Mas espere! Antes de começar com seus garranchos consiga uma boa caneta esferográfica ou tinteiro porque BIC é para listas de compra. E o papel? Papel de saco de pão, é claro!

Máquina datilográfica

Fotografia de uma máquina de escrever elétrica Olivetti ET Personal 55
Olivetti ET Personal 55 https://www.modip.ac.uk/artefact/aibdc-007912

Num mundo onde computadores desktops e mesmo laptops estão perdendo espaço para smartphones de um palmo de comprimento, ter uma mesa de trabalho com uma máquina de escrever em cima certamente passa uma mensagem para quem visita sua casa. Que seu bisavô era um funcionário público ou o Carlos Drummond de Andrade, o que dá no mesmo. Usar uma máquina de escrever para seus arroubos criativos é uma boa maneira de conseguir problemas com sua família e até com vizinhos. Sem exceção, todas são barulhentas. As mais antigas e pesadas inclusive vibram a mesa inteira e tendem a ir se movendo sobre ela por causa das pancadas do carro. Para os jovens: carro é aquela parte cilíndrica que vai de um lado a outro e onde o papel fica enrolado.

Na maioria das vezes, e para a maioria dos escritores de hoje, não faz sentido usar uma máquina de escrever. Profissionais não usam e amadores que levam seu passatempo a sério também não. Nem mesmo o Tom Hanks, colecionador e entusiasta dessas máquinas que publicou um livro de contos temáticos chamado Tipos incomuns. Ele preferiu usar um laptop.

A única vantagem em relação a escrever à mão é que o manuscrito datilografado será mais fácil de revisar e digitalizar. Claro que é uma opção, o importante é escrever. Caso você opte por esse caminho, não caia na tentação dos modelos antigos, clássicos ou mais procurados. Em bom estado não são baratos e nem são as melhores opções. Dependendo do modelo, não há mais tinta e nem manutenção. Procure as elétricas mais novas da Olivetti ou mesmo as térmicas da Casio ou Canon, que não precisam de tinta e usam aqueles rolos de papel de fax que ainda são fáceis e baratos de se encontrar. Se beleza conta um ponto, que tal uma dessas Olivetti da foto acima?

Dispositivos eletrônicos obsoletos ou reinventados

Fotografia de um processador de texto Amstrad NC100
Amstrad NC100 Notepad https://www.flickr.com/photos/fogey03/50405121232

Entre a máquina de escrever tradicional e o computador moderno, por um curto período existiram os processadores de texto. Traziam uma linda tela de cristal líquido e as vezes uma impressora acoplada. É quase impossível encontrar um desses em bom estado e por um preço interessante, além de ter de encarar a barreira de transferir os arquivos para um computador moderno depois, já que a maioria usava disquetes de 3.5 polegadas. Um dos tipos mais famosos e simples, já com USB, é o Alphasmart, bastante barato na gringolândia, mas virtualmente inexistente por aqui. Esses dispositivos dedicados inspiraram a criação do Freewriter, um processador de texto moderno que usa uma tela e-ink. Também é um produto inacessível aqui na selva.

Vale mencionar que recentemente surgiram alguns tablets android com tela e-ink. Diferente do indefectível Kindle, esses tablets costumam ter suporte OTG, portando é possível conectar um teclado externo. Porém, de novo, não estão acessíveis por um preço convidativo. Para quem gosta de gambiarras e se aventurar com hacks, existe um modo de transformar um Kobo Glo HD ou Mini numa máquina de escrever semelhante ao Freewriter. Chama-se Kobowriter e pode ser encontrado no GitHub.

Uma opção ao alcance de qualquer um no Brasil são os PDAs ou handhelds como os Palm e Pocket PCs da HP. São baratos e abundantes no mercado de usados. A maioria só precisa de uma bateria nova. Podem ser usados com reconhecimento de escrita como o Graffiti ou junto com um teclado QWERTY. Eu uso um Palm TX com um teclado compatível e posso dizer que é uma solução excelente. Se você escolher esse caminho recomendo os últimos modelos Palm da série Tungsten e notadamente esse TX, que tem wifi, bluetooth e infravermelho que ele usa para se conectar a um teclado dobrável também muito fácil de se encontrar. Os últimos modelos de PDAs já vinham com slot de cartão SD e podiam ser facilmente sincronizados com computadores novos. Meu TX conversa perfeitamente com o Windows 11 através do cabo de sincronização, mas a forma mais simples é mandar o arquivo doc via bluetooth.

Computador ou smartphone offline

Logotipo do app Retro Text Editor
Logo do app Retro Text Editor https://f-droid.org/en/packages/click.dummer.textthing/

Outra opção menos retrô é usar um laptop apenas para escrever. Existe uma enxurrada de netbooks baratos no Mercado Livre perfeitos para isso. São modelos antigos que tem desempenho sofrível para qualquer coisa, menos para escrever. Basta ter uma tela intacta e um teclado funcional e minimamente confortável. O segredo é simplesmente usá-lo sem dramas. Não conectar a Internet é meio caminho andado para evitar distrações. Um maravilhoso Windows XP offline ou qualquer distribuição Linux é suficiente. Você também pode ser mais direto se usar o FreeDOS, que ensinei a instalar no post mencionado no começo deste.

Uma variação dessa abordagem é usar um smartphone já encostado. Neste caso é questão apenas de encontrar um bom teclado bluetooth ou mesmo USB, usando um cabo OTG (USB Host). A grande vantagem desse método é poder usar o seu teclado preferido. Para smartphones android, recomendo um editor chamado Retro Text Editor, que está disponível no F-Droid. Existem muitos outros editores para celular que seguem a onda distraction free, inclusive com sincronização na nuvem, mas em se tratando de escrever sem se distrair de modo offline e sem frescura este é mais que suficiente. Não tem update, propaganda e é open source.

Editores de texto distraction free

Screenshot do Microsoft Word no modo Foco
Screenshot do Microsoft Word no modo Foco

Existem também os editores de texto feitos especialmente para barrar distrações e até alguns programas que agem como um tutor ou carrasco, impedindo durante um tempo determinado que você faça qualquer outra coisa além de escrever. O próprio Microsoft Word já possui um botão chamado Foco que oculta tudo menos a página em que se está trabalhando. Se você não vê necessidade extrema, pode querer apenas um editor distraction free. Existem muitos e os meus preferidos são o FocusWriter e o WriteMonkey.

Concluindo

Todas essas possibilidades têm suas particularidades, com vantagens e desvantagens que vão de custo zero ao custo de um rim. A maioria das pessoas a sua volta talvez estranhe que você repentinamente passe a carregar uma maleta de um lado a outro contendo uma peça de museu ou de repente apareça com as mãos sempre sujas de tinta, mas o importante é que você encontre seu caminho e que possa trabalhar com tranquilidade e sem ser afetado pela pressão onipresente, burra e infértil que as vezes nos cerca nessa nossa vida moderna.

Para terminar, alguns conselhos gratuitos. Se você vai pelo caminho digital tenha em mente que quanto mais simples um editor de texto for, melhor ele vai ser. Revisão gramatical e estilos, na maioria dos casos, devem ocupar a sua mente somente depois que o manuscrito estiver terminado, por isso prefira o formato txt e uma fonte mono espaçada. Se você vai pelo caminho do analógico, não acumule papel, vá digitalizando tudo a medida que escreve. É importante lembrar que o objetivo é facilitar o processo criativo, mas ao mesmo tempo não complicar demais as coisas. Então se o método escolhido acrescentar trabalho que consuma muito do valioso tempo é melhor procurar outra solução.

Fotografia de um Palm TX conectado num teclado dobrável.